Tudo começou num sábado, numa noite quente na cidade de Barretos, estávamos eu e meu irmão de férias na casa dos meus pais e fomos convidados para ir a uma fazenda fazer uma pamonhada. Era época de milho verde e este era um costume de famílias da região. Nós gostamos do convite, pois aproveitaríamos para pescar – este era um dos objetivos de nossas férias, e na fazenda passava o rio velho que era bem piscoso.
Depois de um café com biscoito de polvilho, ajeitamos a traia no carro, o pessoal se acomodou e partimos para a estrada.
Era uma linda manhã de dezembro e os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, um prenúncio de muito calor, a brisa fresca batia em nosso rosto numa sensação agradável, o cheiro (ah!) o cheiro de terra úmida nos embriagava como um néctar que só a natureza pode nos oferecer, pois havia caído uma chuva leve durante a noite.
Depois de uma hora e meia, chegamos na fazenda, entramos por um mata burro e percorremos uma estrada de dois quilômetros com muita costela de vaca. Chegamos na sede da fazenda, era uma imensa casa com uma área coberta em toda sua volta protegendo do sol e da chuva e a uma certa distância ficava a casa do capataz e outras onde morava alguns trabalhadores, o proprietário morava na cidade. Embaixo de uma mangueira se encontrava o José, um parente juntamente com um homem alto de vasto bigode com chapéu e calçado com alpercatas. Ele parecia um rude peão, mas era o capataz. Fomos apresentados e ele logo se dirigiu para uma mesa coberta com uma alva toalha, descobriu a mesa e surgiu bolo de fubá, broas, biscoito e até mandioca frita.
Apresentou a esposa e pediu a ela que trouxesse o café.
- Agora vamos comer e depois trabalhar.
Dito isso foi até uma lona que cobria um monturro, apontou dizendo: - Um presente pra vocês. Puxou a lona e surgiu uma montanha de espigas, após o deglute todos se puseram a tirar palha do milho, quando tinha uma boa quantidade sem palha, minha mãe distribuiu as tarefas: limpar, ralar e coar o creme do milho.
Alguns continuaram a tirar a palha, só paramos para o almoço, depois do mesmo, continuamos a tarefa. Às duas horas estava tudo pronto, só faltava cozinhar as pamonhas.
Eu, meu pai e meu irmão pegamos a traia de pesca, entramos no carro e fomos pro rio que ficava a dois quilômetros, lá chegando nos embrenhamos no mato em busca de um lugar ideal para pescar, quando encontramos nos acomodamos, cevamos com milho seco e iniciamos a pescaria. Foi uma festa, depois de algum tempo o viveiro estava quase cheio, foi quando de repente os peixes deixaram de beliscar, meu pai experiente observou: - Tem cobra ou peixe grande por perto.
Dito isso, perguntou se tínhamos anzol grande com linha de aço na ponta, pois linha de náilon peixe grande corta no dente. Meu irmão tinha, armou com um peixe vivo e soltou no rio como isca. Dez minutos depois a linha esticou e um Dourado pulou no ar tentando escapar. Foi difícil tirá-lo do rio, justificando a fama de tigre dos rios. Ele media cerca de setenta centímetros, um belo exemplar. Meu irmão não cabia em si de contente dizendo que ia salgá-lo e levar para Barretos, tirar umas fotos para mostrar aos amigos em São Paulo. Ele havia deixado a máquina de fotos em Barretos. Encerramos a pescaria, pois a noite se aproximava e fomos embora. Quando chegamos na fazenda, o José estava nos esperando, pois íamos dormir no sítio dele, pois não cabia todos na casa do capataz.
Minha mãe se prontificou a limpar e acondicionar os peixes, pois na fazenda tinha luz elétrica e geladeira. Meu irmão pediu a ela que salgasse o Dourado que chamava a atenção de todos, pois nunca se havia pescado um daquele tamanho, menos o capataz que estava recolhendo umas poucas cabeças de gado, pois a fazenda era para formar pasto para cilagem e o gado era para produzir carne e leite para o gasto na fazenda. Chegando no sítio, tomamos um banho, jantamos e fomos tomar um café, sentados na varanda. Depois de um bom papo fomos dormir.
No dia seguinte, saímos bem cedo, deixamos o José perto da sede e fomos direto para o rio. Depois iríamos almoçar na fazenda e a tarde iríamos para Barretos. Lá pelas dez horas, o Zé apareceu a cavalo onde estávamos, chamou meu irmão e disse:
- Tenho uma notícia que você não vai gostar. Ontem depois que fomos pro sítio, o Durval (capataz) apanhou o Dourado deu pra esposa retalhar temperar para fazer assado para o almoço de hoje. Agora ele já deve estar enrolado em folha de bananeira sobre o braseiro.
Meu irmão ficou lívido de raiva, mas nada disse, pois o homem estava na casa dele. Bem, adeus fotos. Foi uma pena porque ele adorava mostrar e falar de suas pescarias, um assunto que ele dominava como poucos. Quando chegamos para almoçar seu mau-humor foi quebrado por um gole de conhaque e o som da viola e da música que o Durval cantava, meu irmão era fã de música sertaneja. Depois do almoço, que estava uma delícia – pois a dona além de muito simpática, era ótima cozinheira – nos sentamos sob a mangueira. Um café, um papo furado e relaxamento.
Lá pelas quatro horas, arrumamos a traia, uma cesta de pamonha pra levar, nos despedimos e ficamos de voltar na terça, pois tínhamos ainda vários dias de férias. Entramos no carro e partimos. À noite, em casa, recebemos umas visitas, entre elas meu cunhado Coréia que quando soube do peixe começou a fazer gozação, dizendo que era conversa de pescador, o que deixou meu irmão irritado e blasfemando contra o Durval.
Na segunda-feira resolvemos levar algo para agradecer a hospitalidade docasal, minha mãe sugeriu que levássemos doce de leite, pois o Durval não permitia que usasse leite para doce, eles só usavam para fazer queijo que ajudava na renda. Fomos, então, à casa de um casal que fazia doce de leite tipo Embaré em barra e cremoso, com uma pitada de café que era uma delícia. Lá chegando, fomos recebidos por dois gansos mais bravos que cachorro, fechados os gansos, entramos, compramos dois quilos de cada e fomos embora.
Na terça-feira levantamos de madrugada e fomos pra fazenda, chegamos ainda no escuro paramos o carro embaixo da mangueira e aguardamos alguém aparecer, o silêncio era profundo. Passado algum tempo, o Durval e os dois filhos de nove e onze anos apareceram.
- Chegue mais que o café tá saindo.
Saímos do carro, meu irmão com a caixa de traia na mão, pois tinha que preparar umas linhadas e separar uns anzóis. Os primeiros raios de sol começavam a surgir no horizonte, sentamos em um banco comprido que estava encostado na parede, meu irmão começou manipular a traia sob o olhar curioso dos garotos, ele notando umas varas sob o beiral perguntou: - Vocês gostam de pescar?
- Ah, gostamos sim, mas não temos linha nem anzol, enroscou tudo no rio, mas meu vai comprar mais. Não vai pai?, disse um dos meninos.
- Vou sim. Respondeu ele que estava sentado em tronco esperando o café. Meu irmão então perguntou: - Eu posso dar uns anzóis para eles, pois tenho bastante?
- Pode sim. Mas tomem cuidado com esses anzóis noruegueses, pois quando fisga, o peixe só escapa morto.
Meu irmão separou linha e anzol, esvaziou dois tubos de chumbada em um compartimento da caixa e colocou os anzóis no tubo.
- Quero um desse aqui também! Falou o menino apontando para um anzol de lambada, que são três anzóis soldados em forma de ancora, de aproximadamente três centímetros. Um anzol perigoso. Meu irmão disse “deste eu tenho três, vou dar dois pra vocês e ficar com um”. Eles, então, pegaram os tubos, despejaram no banco e começaram a contar os anzóis. Foi quando o pai ralhou e mandou guardar, meu irmão então pegou os tubos e disse “deixe que eu guardo”, colocou os anzóis no recipiente fechou e entregou aos meninos que foram guardá-los. Um detalhe que eu só soube depois: quando colocou os anzóis no tubo meu irmão ficou com um escondido na palma da mão.
Logo a dona da casa chamou: - Pode vir que café ta pronto!
Meu irmão ao se levantar tropeçou numa botina que estava no chão no final do banco, ele então se abaixou pegou a botina e pôs no lugar. Antes de entrarmos, meu irmão foi até o carro pegou a sacola com o doce de leite entregou ao Durval que agradeceu com entusiasmo. Tomamos café com bolinho de chuva que estava ótimo. Depois do café, saímos, o Durval batendo na barriga feliz dizia: “agora sim, pois saco vazio não para em pé”. Dito isso, acendeu um cigarro chamou os garotos “agora vamos tratar dos porcos e depois examinar as cercas”.
Nós aproveitamos o embalo, dissemos até mais e fomos em direção ao carro para ir pescar. Já na entrada do mangueirão, ou chiqueiro, o Durval gritou: “o almoço é as onze e hoje tem peixe frito”. Peixe que pescamos no domingo. Meu irmão resmungou: “talvez tenha mais que almoço”, o que não entendi, perguntei, mas ele disse “deixa pra lá, não esquenta”.
Durante o trajeto até o rio, notei uma mudança nele. Parecia mais alegre, mas não comentei nada. Passada uma hora que estávamos pescando eis que ouvimos gritos que vinha da estrada.
- Moço! Oi moço, meu pai ta chamando!
A uns cinqüenta metros, o filho do Durval montado a cavalo em pelo acenava e gritava chamando, acenei pra ele e fui ver o que era, o garoto chorava e disse que quando o pai calçou a botina um bicho mordeu o pé dele e quando ele tentava tirar o bicho mordia mais forte.
- Meu pai acha que e escorpião.
Eu disse para o garoto ir pra casa que já estávamos indo. Fui até meu irmão e contei o que houve e para minha surpresa ele deu um risinho sarcástico dizendo “isto não é nada” e calmamente juntou as traias. Aquela atitude me irritou e quase brigamos, pegou o carro e calmamente dirigiu até a fazenda, aumentando minha irritação. Chegando na fazenda, vimos o Durval sentado no banco um pé com alpercata outro com botina, pálido como neve. Perguntei o que houve, ele explicou:
- Quando calcei a botina, alguma coisa ferroou meu pé e quando tento tirar ele ferroa mais forte.
Meu irmão pensou e disse “acho que é escorpião”, o homem quase teve um troço.
- Bem o que o senhor quer que a gente faça?
- Me leve até a currutela* pra ver o que o Mário pode fazer.
Mario era um enfermeiro que atendia o pessoal da currutela e da vizinhança, em um pequeno posto de saúde de primeiros socorros. O médico vinha uma vez por semana. Um peão da fazenda tinha feito um torniquete para estacionar o veneno, meu irmão tirou dizendo o sangue tem de correr rápido para diluir o veneno. Pediu que eu pegasse um litro de conhaque que estava no carro deu o litro pro Durval e este disse que não bebia, mas meu irmão insistiu que precisava, pois seria bom. Ele tomou um gole meu irmão retrucou “é pra tomar de verdade, o senhor não quer morrer quer? Pode ter uma parada do coração, aí babau”.
Ele pôs o litro na boca tomou uma talagada que foi até um quarto de litro, pegamos ele pelas pernas e pelos braços ajeitamos no carro e partimos. Uma coisa me preocupava: as costelas de vaca até o asfalto. Dito e feito, quando entramos na estradinha meu irmão acelerou forte o homem gritava berrava implorava à Nossa Senhora dizendo que o bicho tava matando ele.
- Pára o carro pelo amor de Deus!
Meu irmão dizia “não posso, se não o senhor morre”. Enfim chegamos no asfalto, meu irmão passou o litro pro homem e disse “tome mais um gole, vai ser bom”, ele tomou e foi até a metade do litro. Quando chegamos no posto, tiramos ele do carro, levamos psra dentro e colocamos em uma maca. E ele gemendo. Explicamos ao enfermeiro o que estava havendo, ele deu uma olhada e disse “vou ter que cortar a botina para tirar o bicho”.
O Durval retrucou com a voz pastosa “cortar a botina não, ela é novinha”. O enfermeiro percebendo a voz, cheirou o hálito dele e disse “mas ele está bêbado! O Durval não bebe!”. Meu irmão explicou ele estava sentindo muita dor eu ele deu lhe uns goles. O enfermeiro apanhou uma correia que usava para imobilizar cavalos e bois, pois ele também era veterinário e prendeu as pernas na maca. Nesta altura havia algumas pessoas em volta.
- Vocês seguram os braços que vou tirar a botina no tranco mas tomem cuidado pois o escorpião pode cair em cima de alguém e meter o ferrão pois o bicho vai sair furioso.
Ccobriu o Durval com um lençol pra não cair em cima dele, segurou o calcanhar e o bico da botina contou ate três deu um puxão e arrancou a botina. O Durval deu um berro que parecia um touro sendo castrado e desmaiou, todos pularam para trás e nada de escorpião. Quando olharam para o pé que estava roxo e inchado, que escorpião que nada! Ele tinha era um anzol de lambada com duas pontas fisgadas no peito do pé. Logo ele estava voltando a si, o enfermeiro deu sinal para que o segurassem aplicou um anestésico no local, cortou e tirou o anzol. Deu uns pontos e enfaixou. Entregou o anzol pro Durval e disse “eis aqui o seu escorpião”, ele olhou como se não tivesse entendendo nada, virou para o meu irmão que estava com um sorriso sarcástico no rosto e disse “me dá mais um gole daquele mel”. Meu irmão foi até o carro pegou o litro e algo mais que colocou na mão do Durval, que ficou com dois anzóis.
Aí eu entendi o que houve, quando tropeçou na botina e a pôs no lugar, ele colocou um dos anzóis dos garotos dentro da mesma, um dos garotos ia pagar o pato, uma pena. Mas este é o meu irmão. O Durval já meio bêbado pegou o litro pôs na boca e tomou o resto, virou-se para meu irmão e perguntou qual era seu nome mesmo. Ele com um sorriso cínico que lhe era peculiar respondeu Luiz, Luiz Dourado.
* uma pequena comunidade
Depois de um café com biscoito de polvilho, ajeitamos a traia no carro, o pessoal se acomodou e partimos para a estrada.
Era uma linda manhã de dezembro e os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, um prenúncio de muito calor, a brisa fresca batia em nosso rosto numa sensação agradável, o cheiro (ah!) o cheiro de terra úmida nos embriagava como um néctar que só a natureza pode nos oferecer, pois havia caído uma chuva leve durante a noite.
Depois de uma hora e meia, chegamos na fazenda, entramos por um mata burro e percorremos uma estrada de dois quilômetros com muita costela de vaca. Chegamos na sede da fazenda, era uma imensa casa com uma área coberta em toda sua volta protegendo do sol e da chuva e a uma certa distância ficava a casa do capataz e outras onde morava alguns trabalhadores, o proprietário morava na cidade. Embaixo de uma mangueira se encontrava o José, um parente juntamente com um homem alto de vasto bigode com chapéu e calçado com alpercatas. Ele parecia um rude peão, mas era o capataz. Fomos apresentados e ele logo se dirigiu para uma mesa coberta com uma alva toalha, descobriu a mesa e surgiu bolo de fubá, broas, biscoito e até mandioca frita.
Apresentou a esposa e pediu a ela que trouxesse o café.
- Agora vamos comer e depois trabalhar.
Dito isso foi até uma lona que cobria um monturro, apontou dizendo: - Um presente pra vocês. Puxou a lona e surgiu uma montanha de espigas, após o deglute todos se puseram a tirar palha do milho, quando tinha uma boa quantidade sem palha, minha mãe distribuiu as tarefas: limpar, ralar e coar o creme do milho.
Alguns continuaram a tirar a palha, só paramos para o almoço, depois do mesmo, continuamos a tarefa. Às duas horas estava tudo pronto, só faltava cozinhar as pamonhas.
Eu, meu pai e meu irmão pegamos a traia de pesca, entramos no carro e fomos pro rio que ficava a dois quilômetros, lá chegando nos embrenhamos no mato em busca de um lugar ideal para pescar, quando encontramos nos acomodamos, cevamos com milho seco e iniciamos a pescaria. Foi uma festa, depois de algum tempo o viveiro estava quase cheio, foi quando de repente os peixes deixaram de beliscar, meu pai experiente observou: - Tem cobra ou peixe grande por perto.
Dito isso, perguntou se tínhamos anzol grande com linha de aço na ponta, pois linha de náilon peixe grande corta no dente. Meu irmão tinha, armou com um peixe vivo e soltou no rio como isca. Dez minutos depois a linha esticou e um Dourado pulou no ar tentando escapar. Foi difícil tirá-lo do rio, justificando a fama de tigre dos rios. Ele media cerca de setenta centímetros, um belo exemplar. Meu irmão não cabia em si de contente dizendo que ia salgá-lo e levar para Barretos, tirar umas fotos para mostrar aos amigos em São Paulo. Ele havia deixado a máquina de fotos em Barretos. Encerramos a pescaria, pois a noite se aproximava e fomos embora. Quando chegamos na fazenda, o José estava nos esperando, pois íamos dormir no sítio dele, pois não cabia todos na casa do capataz.
Minha mãe se prontificou a limpar e acondicionar os peixes, pois na fazenda tinha luz elétrica e geladeira. Meu irmão pediu a ela que salgasse o Dourado que chamava a atenção de todos, pois nunca se havia pescado um daquele tamanho, menos o capataz que estava recolhendo umas poucas cabeças de gado, pois a fazenda era para formar pasto para cilagem e o gado era para produzir carne e leite para o gasto na fazenda. Chegando no sítio, tomamos um banho, jantamos e fomos tomar um café, sentados na varanda. Depois de um bom papo fomos dormir.
No dia seguinte, saímos bem cedo, deixamos o José perto da sede e fomos direto para o rio. Depois iríamos almoçar na fazenda e a tarde iríamos para Barretos. Lá pelas dez horas, o Zé apareceu a cavalo onde estávamos, chamou meu irmão e disse:
- Tenho uma notícia que você não vai gostar. Ontem depois que fomos pro sítio, o Durval (capataz) apanhou o Dourado deu pra esposa retalhar temperar para fazer assado para o almoço de hoje. Agora ele já deve estar enrolado em folha de bananeira sobre o braseiro.
Meu irmão ficou lívido de raiva, mas nada disse, pois o homem estava na casa dele. Bem, adeus fotos. Foi uma pena porque ele adorava mostrar e falar de suas pescarias, um assunto que ele dominava como poucos. Quando chegamos para almoçar seu mau-humor foi quebrado por um gole de conhaque e o som da viola e da música que o Durval cantava, meu irmão era fã de música sertaneja. Depois do almoço, que estava uma delícia – pois a dona além de muito simpática, era ótima cozinheira – nos sentamos sob a mangueira. Um café, um papo furado e relaxamento.
Lá pelas quatro horas, arrumamos a traia, uma cesta de pamonha pra levar, nos despedimos e ficamos de voltar na terça, pois tínhamos ainda vários dias de férias. Entramos no carro e partimos. À noite, em casa, recebemos umas visitas, entre elas meu cunhado Coréia que quando soube do peixe começou a fazer gozação, dizendo que era conversa de pescador, o que deixou meu irmão irritado e blasfemando contra o Durval.
Na segunda-feira resolvemos levar algo para agradecer a hospitalidade docasal, minha mãe sugeriu que levássemos doce de leite, pois o Durval não permitia que usasse leite para doce, eles só usavam para fazer queijo que ajudava na renda. Fomos, então, à casa de um casal que fazia doce de leite tipo Embaré em barra e cremoso, com uma pitada de café que era uma delícia. Lá chegando, fomos recebidos por dois gansos mais bravos que cachorro, fechados os gansos, entramos, compramos dois quilos de cada e fomos embora.
Na terça-feira levantamos de madrugada e fomos pra fazenda, chegamos ainda no escuro paramos o carro embaixo da mangueira e aguardamos alguém aparecer, o silêncio era profundo. Passado algum tempo, o Durval e os dois filhos de nove e onze anos apareceram.
- Chegue mais que o café tá saindo.
Saímos do carro, meu irmão com a caixa de traia na mão, pois tinha que preparar umas linhadas e separar uns anzóis. Os primeiros raios de sol começavam a surgir no horizonte, sentamos em um banco comprido que estava encostado na parede, meu irmão começou manipular a traia sob o olhar curioso dos garotos, ele notando umas varas sob o beiral perguntou: - Vocês gostam de pescar?
- Ah, gostamos sim, mas não temos linha nem anzol, enroscou tudo no rio, mas meu vai comprar mais. Não vai pai?, disse um dos meninos.
- Vou sim. Respondeu ele que estava sentado em tronco esperando o café. Meu irmão então perguntou: - Eu posso dar uns anzóis para eles, pois tenho bastante?
- Pode sim. Mas tomem cuidado com esses anzóis noruegueses, pois quando fisga, o peixe só escapa morto.
Meu irmão separou linha e anzol, esvaziou dois tubos de chumbada em um compartimento da caixa e colocou os anzóis no tubo.
- Quero um desse aqui também! Falou o menino apontando para um anzol de lambada, que são três anzóis soldados em forma de ancora, de aproximadamente três centímetros. Um anzol perigoso. Meu irmão disse “deste eu tenho três, vou dar dois pra vocês e ficar com um”. Eles, então, pegaram os tubos, despejaram no banco e começaram a contar os anzóis. Foi quando o pai ralhou e mandou guardar, meu irmão então pegou os tubos e disse “deixe que eu guardo”, colocou os anzóis no recipiente fechou e entregou aos meninos que foram guardá-los. Um detalhe que eu só soube depois: quando colocou os anzóis no tubo meu irmão ficou com um escondido na palma da mão.
Logo a dona da casa chamou: - Pode vir que café ta pronto!
Meu irmão ao se levantar tropeçou numa botina que estava no chão no final do banco, ele então se abaixou pegou a botina e pôs no lugar. Antes de entrarmos, meu irmão foi até o carro pegou a sacola com o doce de leite entregou ao Durval que agradeceu com entusiasmo. Tomamos café com bolinho de chuva que estava ótimo. Depois do café, saímos, o Durval batendo na barriga feliz dizia: “agora sim, pois saco vazio não para em pé”. Dito isso, acendeu um cigarro chamou os garotos “agora vamos tratar dos porcos e depois examinar as cercas”.
Nós aproveitamos o embalo, dissemos até mais e fomos em direção ao carro para ir pescar. Já na entrada do mangueirão, ou chiqueiro, o Durval gritou: “o almoço é as onze e hoje tem peixe frito”. Peixe que pescamos no domingo. Meu irmão resmungou: “talvez tenha mais que almoço”, o que não entendi, perguntei, mas ele disse “deixa pra lá, não esquenta”.
Durante o trajeto até o rio, notei uma mudança nele. Parecia mais alegre, mas não comentei nada. Passada uma hora que estávamos pescando eis que ouvimos gritos que vinha da estrada.
- Moço! Oi moço, meu pai ta chamando!
A uns cinqüenta metros, o filho do Durval montado a cavalo em pelo acenava e gritava chamando, acenei pra ele e fui ver o que era, o garoto chorava e disse que quando o pai calçou a botina um bicho mordeu o pé dele e quando ele tentava tirar o bicho mordia mais forte.
- Meu pai acha que e escorpião.
Eu disse para o garoto ir pra casa que já estávamos indo. Fui até meu irmão e contei o que houve e para minha surpresa ele deu um risinho sarcástico dizendo “isto não é nada” e calmamente juntou as traias. Aquela atitude me irritou e quase brigamos, pegou o carro e calmamente dirigiu até a fazenda, aumentando minha irritação. Chegando na fazenda, vimos o Durval sentado no banco um pé com alpercata outro com botina, pálido como neve. Perguntei o que houve, ele explicou:
- Quando calcei a botina, alguma coisa ferroou meu pé e quando tento tirar ele ferroa mais forte.
Meu irmão pensou e disse “acho que é escorpião”, o homem quase teve um troço.
- Bem o que o senhor quer que a gente faça?
- Me leve até a currutela* pra ver o que o Mário pode fazer.
Mario era um enfermeiro que atendia o pessoal da currutela e da vizinhança, em um pequeno posto de saúde de primeiros socorros. O médico vinha uma vez por semana. Um peão da fazenda tinha feito um torniquete para estacionar o veneno, meu irmão tirou dizendo o sangue tem de correr rápido para diluir o veneno. Pediu que eu pegasse um litro de conhaque que estava no carro deu o litro pro Durval e este disse que não bebia, mas meu irmão insistiu que precisava, pois seria bom. Ele tomou um gole meu irmão retrucou “é pra tomar de verdade, o senhor não quer morrer quer? Pode ter uma parada do coração, aí babau”.
Ele pôs o litro na boca tomou uma talagada que foi até um quarto de litro, pegamos ele pelas pernas e pelos braços ajeitamos no carro e partimos. Uma coisa me preocupava: as costelas de vaca até o asfalto. Dito e feito, quando entramos na estradinha meu irmão acelerou forte o homem gritava berrava implorava à Nossa Senhora dizendo que o bicho tava matando ele.
- Pára o carro pelo amor de Deus!
Meu irmão dizia “não posso, se não o senhor morre”. Enfim chegamos no asfalto, meu irmão passou o litro pro homem e disse “tome mais um gole, vai ser bom”, ele tomou e foi até a metade do litro. Quando chegamos no posto, tiramos ele do carro, levamos psra dentro e colocamos em uma maca. E ele gemendo. Explicamos ao enfermeiro o que estava havendo, ele deu uma olhada e disse “vou ter que cortar a botina para tirar o bicho”.
O Durval retrucou com a voz pastosa “cortar a botina não, ela é novinha”. O enfermeiro percebendo a voz, cheirou o hálito dele e disse “mas ele está bêbado! O Durval não bebe!”. Meu irmão explicou ele estava sentindo muita dor eu ele deu lhe uns goles. O enfermeiro apanhou uma correia que usava para imobilizar cavalos e bois, pois ele também era veterinário e prendeu as pernas na maca. Nesta altura havia algumas pessoas em volta.
- Vocês seguram os braços que vou tirar a botina no tranco mas tomem cuidado pois o escorpião pode cair em cima de alguém e meter o ferrão pois o bicho vai sair furioso.
Ccobriu o Durval com um lençol pra não cair em cima dele, segurou o calcanhar e o bico da botina contou ate três deu um puxão e arrancou a botina. O Durval deu um berro que parecia um touro sendo castrado e desmaiou, todos pularam para trás e nada de escorpião. Quando olharam para o pé que estava roxo e inchado, que escorpião que nada! Ele tinha era um anzol de lambada com duas pontas fisgadas no peito do pé. Logo ele estava voltando a si, o enfermeiro deu sinal para que o segurassem aplicou um anestésico no local, cortou e tirou o anzol. Deu uns pontos e enfaixou. Entregou o anzol pro Durval e disse “eis aqui o seu escorpião”, ele olhou como se não tivesse entendendo nada, virou para o meu irmão que estava com um sorriso sarcástico no rosto e disse “me dá mais um gole daquele mel”. Meu irmão foi até o carro pegou o litro e algo mais que colocou na mão do Durval, que ficou com dois anzóis.
Aí eu entendi o que houve, quando tropeçou na botina e a pôs no lugar, ele colocou um dos anzóis dos garotos dentro da mesma, um dos garotos ia pagar o pato, uma pena. Mas este é o meu irmão. O Durval já meio bêbado pegou o litro pôs na boca e tomou o resto, virou-se para meu irmão e perguntou qual era seu nome mesmo. Ele com um sorriso cínico que lhe era peculiar respondeu Luiz, Luiz Dourado.
* uma pequena comunidade